Ainda estão vivos alguns pais, parentes e amigos de muitas pessoas que
foram presas, torturadas e algumas desapareceram sem que a família tivesse o
direito de saber como, onde e porque eles sumiram sem que deixassem quaisquer
vestígios, portanto, nem puderam enterrar seus familiares.
Algumas pessoas perguntam se essa Comissão da Verdade tem conotação de
revanchismo. Só pensam assim quem desconhece o sofrimento, a angústia de quem
viveu naquela época e teve alguém preso pelo regime militar sofrendo as
barbaridades impostas de forma constrangedora. Muitos sequer conseguem falar no
assunto, tamanho o abuso usado contra um ser humano nas prisões pelo Brasil
todo, sem respeito, sem justiça, apenas porque assim ditavam os ditadores.
Desconhecem a história porque era proibido falar no assunto, até
porque se falasse era preso e torturado. O judiciário pouco podia fazer, as
arbitrariedades eram urgidas pelos dirigentes estaduais nomeados pelo governo
federal e o Presidente Militar ordenava todas essas manobras para erradicar o
comunismo no Brasil. Comunista era um vilão, bastava ser contra qualquer coisa
do regime militar que estava com seu destino traçado, ser preso. Muitos foram
torturados até a morte para confessar um crime que era maior do que eles podiam
imaginar, tudo era montado ardilosamente pelos torturadores. Isso foi um
período de imensa vergonha ao país, marcado pelo horror e desrespeito ao ser
humano, semelhante a uma coisa conhecida e bem divulgada pelos filmes da
Segunda Guerra Mundial contra os judeus, não tínhamos salas de incineração
conhecidas – hoje se tem notícias de fornos usados para sumir com os corpos,
mas, muitas pessoas desapareceram e nunca mais se teve notícias, dentre elas,
jovens estudantes que foram considerados perigosos por dirigir órgãos
estudantis, fazendo greves e manifestações contra o governo.
Muitos ficam boquiabertos e não acreditam nas histórias. Participando
da gravação sobre a vida de Mauro Borges, seu filho se surpreendeu com a falta
de informação das pessoas ali presentes, não porque tenham pouca cultura, muito
mais porque o tempo negro da ditadura militar não é contado, muito se esconde.
Somente a partir de 1993 é que alguns livros começaram a ser lançados no
mercado.
Para os cinegrafistas a história da prisão do ex-governador em 1966,
no Rio Grande do Sul, pareciam cenas de
um filme. Mauro Borges estava proibido de dar entrevistas desde sua saída do
governo, mas, com a publicação de seu nome em uma lista de pessoas cassadas
pelo governo militar naqueles dias, a curiosidade dos jornalistas foi aguçada e
um mais esperto o descobriu em Porto Alegre, fez a entrevista e publicaram com
destaque, no Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, a sua frase dizendo que se
sentia muito honrado em ter sido cassado pelo governo militar. Foi o suficiente
para que no dia seguinte, já em São Francisco de Assis, ele desconfiasse que
alguns homens que estavam em cima do telhado, como se estivessem consertando as
telhas, não eram simples trabalhadores. Militar de formação, Mauro comentou com
a família que aqueles homens, provavelmente, estavam ali o vigiando. Estava
correto, no meio da noite, invadiram a casa, arrombando a porta, todos com
metralhadoras na mão, prenderam o ex- governador dizendo que tinham ordens para
levá-lo para a prisão militar em Porto Alegre. Temendo por sua vida, sua esposa
pediu para que o filho Ubiratan acompanhasse o pai, os militares permitiram. Na
prisão tinha somente a cama de alvenaria, sem colchão, para ele se acomodar.
Logo trouxeram a comida, por precaução, ele não comeu, notou que deixaram a
porta sem trancar. Um jovem entrou para buscar o prato e se identificou como
filho de um ex subordinado, do tempo em que ele servira no Rio Grande do Sul,
sussurrando ele disse que o pai o admirava, meio apavorado, avisou que estavam
lhe armando uma cilada se ele saísse da cela. Mauro Borges pediu a ele um
jornal, cobriu o rosto com ele e dormiu. Foi acordado com estrondo de um tiro
dado ao lado de seu rosto, atordoado pelo barulho perguntou ao sargento armado
porque aquilo. Ele respondeu que a arma tinha disparado sozinha. Mauro, tinha
sido instrutor de tiro no exército, entendia bem de armas e aquele revólver
jamais dispararia sozinho, tinha sido mais uma provocação para que ele reagisse
e assim eles teriam um motivo para matá-lo. Ele pensou e sem nenhuma
alternativa, achou melhor deitar novamente. Felizmente, no dia seguinte ele
saiu da prisão graças ao bom advogado, Sobral Pinto, o mesmo que impetrou o
Habeas Corpus a seu favor quando ainda estava no governo, motivo de estudo até
hoje.
Era tanto horror acontecendo por todo o Brasil, que muitos jovens
optaram por sair do país, inclusive, o filho do ex-governador, imaginem um
jovem, com apenas 20 anos, ser designado por sua mãe para velar pela vida de seu
pai ameaçada pelos militares, e, também, por ser responsável para agilizar a ação de um dos maiores advogados
do Brasil. Embora muito jovem, fez com sucesso a sua missão.
E, ainda, pensam que a Comissão da Verdade pode ser uma revanche, como
desfazer os traumas e restaurar as consequências desses atos? Durante mais de
quinze anos deixaram várias famílias sem direito ao trabalho, já que seus
cargos foram tomados pelo governo militar, e, o mais triste, como restituir a
vida de tantos jovens, pais e mães de famílias que desapareceram?
Os dois filhos mais velhos do ex-governador já trabalhavam quando seu
pai foi deposto, eles tiveram seus direitos suspensos, ambos foram afastados de
seus empregos por serem filhos de um homem cassado. Enquanto durou o regime
militar eles foram marcados. Era uma prática comum dos órgãos de repressão do
regime militar perseguir o cassado e toda a sua família, ascendentes e
descendentes.
Esses dois comentários foram postados no jornal on line " A Redação " que publicou esse texto - Comissão da Verdade.
ResponderExcluir2012.05 | : Por Maurício Zaccariotti
Parabéns Maria Dulce. Belo artigo. Expressão da verdade. Aqueles que foram perseguidos pela Ditadura, como nós, sabemos que o que vc disse é, apenas, um fiapo do terror existente na época. A chamada "Comissão da Verdade" é mais do que necessária para passar à limpo o que aconteceu naqueles anos de chumbo e mostrar à geração atual as barbaridades cometidas. Maurício.
2012.05 | : Por Cejana Di Guimarães
Cara Maria Dulce, adorei ler o seu artigo. Exato, honesto, rico em memória. Ele me remeteu a um tempo que não existe mais. O tempo de pessoas dignas. O tempo dos valores, mesmo em politica. Ele me trouxe muitas lembranças, principalmente do meu avô, Antônio Juruena Di Guimarães que foi muito amigo de Mauro e um dos poucos a apoiá-lo mesmo durante o Golpe Militar, fazendo inclusive questão de estar ao seu lado no Palácio das Esmeraldas no momento em que foi deposto. Ou da minha tia France que em 1964 convidou-o para padrinho de casamento - depois de deposto e perseguido - enfrentando o clima tenso e agressivo da época. E ainda recusando-se como jovem procuradora a trabalhar para o novo governo militar. Lembrei-me de muitas histórias ouvidas durante a infância sobre o caráter e a honestidade de Mauro e de seu governo revolucionário - iniciando inclusive uma reforma agrária - e de ter saído da política com as mesmas posses com as quais entrou. Coisa hoje mais do que rara, praticamente inexistente. Obrigada pelo artigo! Obrigada pelas lembranças!