TESTEMUNHO DE UM CIRURGIÃO – Meu encontro com Da. Gercina
Borges Teixeira
HÉLIO MOREIRA
Academia Goiana de Letras
Academia Goiana de Medicina
Instituto Histórico e Geográfico de Goiás
Se observarmos a biografia dos
grandes homens iremos sempre encontrar ao seu lado a mulher que lhe dá suporte,
embora esta figura nem sempre apareça com a luminosidade merecida; muitas vezes
estas criaturas preferem, vencendo inclusive o desejo pessoal de mostrar suas
potencialidades, sujeitarem-se ao anonimato, com o intuito de não desviar os
holofotes que são dirigidos ao companheiro.
Algumas delas, mesmo não desejando
fazer sombra ao marido, realizam por atos e exemplos, feitos que as põem em
evidência no meio da sociedade em que vivem; independentemente dos seus anseios
pessoais são colocadas diante de fatos consumados que as obrigam a assumir, de
maneira definitiva, o compromisso com a história.
Todos os biógrafos de Pedro
Ludovico Teixeira ressaltam, com justiça, a sua trajetória de vida política,
social e familiar, porém, a figura da sua esposa Da. Gercina, cognominada pelo
povo da nossa terra de “A grande Dama” nem sempre é realçada com a dimensão que
ela merece.
A
história da vida dos homens é escrita em capítulos e a função do historiador é
juntar estes fragmentos que ficaram dispersos em épocas que a sombra dos tempos
embaralhou e trazer à tona os coadjuvantes do ator principal que, de alguma
maneira, tiveram atuação no enredo da vida; alguns destes coadjuvantes não
serão lembrados, são como os soldados das frentes de batalha que morrem no
anonimato; os que sobrevivem entram para a história como simples narradores dos
feitos dos seus generais.
A
minha profissão de médico tem me proporcionado a oportunidade de me aproximar
de muitos destes ídolos da vida pública; guardo nas minhas lembranças o
relacionamento que mantive com alguns deles, estrelas ou coadjuvantes, sempre
motivados por alguma relativa dificuldade existencial que eles traziam ao meu
conhecimento, na expectativa de encontrar consolo e possível alivio de
sofrimento.
Poucas
profissões permitem, já no primeiro encontro, esta aproximação tão carinhosa
provocada pela empatia médico/paciente; o médico (o que tem ouvidos para ouvir)
ouve o relato do ser que se posta à sua frente cheio de temores e incertezas;
logo no primeiro encontro, como num passe de mágica, adentramos no seu
recôndito e passamos a ser testemunhas e confidentes das suas dores e das suas
incertezas.
A
partir daí o paciente nos “acompanha” em todas as nossas movimentações diárias,
parece que passam a fazer parte da nossa família!
Não
existe honraria maior para um médico do que a de ter a oportunidade de tentar
ser útil a figuras que a história registrará com marcas indeléveis; conto-lhes
um destes acasos que o destino me reservou - o encontro com Da. Gercina, esposa
do Dr. Pedro Ludovico Teixeira.
Ela
veio sozinha (na verdade, provavelmente algum acompanhante ficou na sala de
espera), se identificou (claro que não haveria necessidade) como se fosse uma
paciente comum; confesso-lhes que fiquei emocionado (eu era tão jovem!); não
poderia deixar de saber que estava ali na minha frente uma das mulheres mais
importantes da história de Goiás.
Ela
deve ter percebido meu embaraço, ajudou-me a ficar à vontade, iniciando comigo
um diálogo que nunca mais iríamos interromper a não ser minutos antes da sua
morte.
Informou-me
que foi encaminhada pelo seu cunhado o médico Dr. Diógenes Magalhães, o qual,
segundo ela, confiava muito na medicina goiana; chamou-me a atenção a sua
maneira simples de se vestir, quase sem adereços e ausência completa de
afetação. Fiquei feliz, muito feliz por conhecê-la e principalmente porque ela,
como figura humana, ultrapassou os limites das minhas expectativas.
Infelizmente o diagnóstico da doença
não lhe era muito favorável, com prognóstico reservado; operada, acompanhei-a
no consultório durante muitos meses, nunca ouvi de Da. Gercina um reclamo, um
lamento, voltando sempre nos dias marcados para revisões e tratamento
quimioterápico (naquela época as drogas apresentavam muitos efeitos colaterais,
causando-lhe sofrimento).
Ela
achava tudo natural, não ficava bem para uma “Grande Dama” reclamar de pequenas
coisas; tinha somente uma preocupação: - “Não deixe o Pedro se inteirar do meu
estado de saúde, ele não tem estrutura para suportar estas coisas”; ela se
esquecia de que o Pedro era médico, portanto vivia dia e noite todos os
problemas da companheira.
Há
um episódio que preciso realçar para o conhecimento dos goianos: quando falei
ao Dr. Pedro sobre a necessidade de intervenção cirúrgica ele não discutiu a
indicação; pediu-me o orçamento, disse-lhe que fosse ao Hospital São Salvador
para discutir os preços, uma vez que o cirurgião e a equipe nada lhe cobrariam.
Alguns minutos depois voltou e pediu-me alguns dias de prazo antes de
encaminhá-la para o Hospital. Não lhe perguntei a razão e nem ele falou-me qual
seria; depois fiquei sabendo que este prazo seria necessário para ele ir a sua
fazenda vender algumas vacas para custear as despesas hospitalares.
Episódio emblemático da vida
pública brasileira se compararmos com os dias atuais; embora Dr. Pedro Ludovico
Teixeira tenha “mandado” no estado de Goiás por mais de trinta anos, não tinha
condições financeiras para acudir a companheira com quem vivia há quase
sessenta anos; pediu-me que adiasse a cirurgia por alguns dias para arrecadar
dinheiro para atender as despesas com o internamento hospitalar!
Infelizmente a evolução da
doença foi inexorável; quando pressentimos que a medicina não mais podia
ajudá-la, atendemos ao seu pedido de voltar para sua casa, segundo ela disse na
ocasião: “Aquela casa da rua 26, onde vivi grande parte da minha vida, me
reserva grandes recordações que estão sempre presentes no meu coração”.
Poucas
horas antes de falecer, tive mais uma prova da fibra desta mulher; chamou-me para
bem perto, puxou-me pelos braços e falou-me quase que cochichando: “Dr. Hélio,
o senhor nunca me enganou, sabia do diagnóstico desde minha primeira visita ao
seu consultório, agradeço-lhe a tentativa de enganar-me, porém, não poderia
baquear para não transmitir desassossego ao Pedro. Em todos estes anos o Pedro
passou por crises piores do que esta que curso agora e nunca deixou
transparecer qualquer abatimento!”.
Nós
médicos, infelizmente, estamos acostumados a ver pacientes morrerem; no
entanto, não conseguimos aceitar placidamente a vitória da morte; tomado de
pungente emoção beijei sua fronte; senti naquela oportunidade que, com Da.
Gercina morria também um capítulo importante da história de Goiás.
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